abril 21, 2020 16:11
Valéria Vernaschi Lima
Uma boa parte dos artigos que focalizam a questão da competência começa discutindo a dissonância ao redor dos conceitos nela implicados e a inexistência de uma única maneira de defini-la. Como os aspectos determinantes desse debate – alicerçado em conceitos que advêm do mundo do trabalho e da educação – não são de domínio de todos os profissionais de saúde, resulta que, muitas vezes, acabamos fazendo uso de conceitos
contraditórios e reproduzindo práticas que gostaríamos de transformar.
No campo da educação, as primeiras noções de desempenho e competência aparecem atreladas às abordagens reducionistas e tecnicistas da prática educativa, vinculadas à teoria ambientalista ou comportamentalista da aprendizagem. Perrenoud (1999) afirma que o uso corrente da noção de competência revela que ainda não superamos a relação linear estabelecida entre competência e objetivos, uma vez que
usamos competência para expressar os objetivos educacionais em termos de condutas e práticas observáveis.
A concepção construtivista de competência e, a partir dela, o modelo holístico e a abordagem dialógica buscam superar a linearidade e a redução do conceito de competência a um ou a parte dos elementos que a constitui. Essa concepção trouxe uma perspectiva da construção social do perfil considerado competente e, por isso, deve ser definida de maneira mais ampla, com destaque para a articulação sujeitos-trabalho. A competência construtivista passou a considerar a historicidade dos sujeitos e seu papel
como atores na construção do perfil das ocupações e profissões, para além de uma adaptação linear desses trabalhadores aos empregos. O modelo holístico deu destaque à articulação e à dimensão relacional entre atributos e ações-tarefas, passando a considerar o contexto e a cultura do local de trabalho, os conhecimentos, as habilidades, os valores, as atitudes e os resultados como elementos integrantes da competência.
Nesse sentido, Hager e Gonzci (1996) reforçam a ideia de que a formação orientada por competência se dá pelo trabalho e não para o trabalho, chamando a atenção para a importância de compreendermos que os currículos não se reduzem aos objetivos pretendidos ou aos desempenhos esperados, sendo sempre o processo e o percurso pelos
quais se constrói um perfil de competência.
A abordagem dialógica agrega dimensões que se traduzem tanto no
aprofundamento do conceito de competência, como nos processos de definição do perfil de competência e de ensino-aprendizagem (LIMA, 2005).
Essa abordagem implica o reconhecimento do marco referencial do princípio dialógico, formulado por Morin (2007), a partir do reconhecimento das relações de complementaridade e de antagonismo advindas da cibernética. Em relação ao conceito de competência, a abordagem dialógica: considera que a noção de competência, em uma
determinada época e sociedade, é dada pela construção social tecida nas tensões e nos ruídos produzidos pela interação entre indivíduo-sociedade; escola-trabalho; sociedadeescola; indivíduo-profissão (LIMA, 2005).
Em relação ao processo educacional, a orientação de currículos por competência se desdobra (i) na integração de disciplinas; (ii) na contextualização e articulação de capacidades a serem colocadas em ação; (iii) no trabalho articulado entre docentes e profissionais responsáveis pelo acompanhamento dos educandos em cenários reais do trabalho em saúde; e (iv) na ampliação da avaliação.
A avaliação de competência requer um alinhamento conceitual, uma vez que: (i) a presença de observadores externos à ação pode modificar o desempenho; (ii) um dos elementos da competência não é diretamente visível, embora fundamente os desempenhos; (iii) as ações observáveis precisam estar contextualizadas e articuladas aos problemas enfrentados na profissão; (iv) os critérios de excelência precisam estar claramente definidos e refletir a combinação de capacidades necessárias para o
enfrentamento das situações profissionais; (v) a capacitação dos avaliadores deve controlar o viés interavaliador e, finalmente, (vi) as variáveis no cenário também devem, o máximo possível, estar controladas.
Assim, competência pode ser inferida por meio da observação de desempenhos e análise das capacidades que os fundamentam, tanto em cenários reais como simulados, considerando-se as condições de contexto e dos resultados alcançados. O perfil de competência deve ser utilizado como padrão de referência e representar as ações da prática profissional, contextualizadas e qualificadas segundo valores, atitudes, contexto e
as melhores práticas.
No atual contexto da saúde brasileira, há uma efervescência de movimentos voltados à construção de novos perfis de competência profissional, visando responder mais direta e prontamente às necessidades da sociedade. As instituições formadoras têm sido tensionadas a reconhecer as mudanças originadas no trabalho, como por exemplo a estratégica da saúde da família, e os novos valores e demandas da sociedade, como por
exemplo a humanização do cuidado, e a ampliar a reflexão sobre a atuação da escola, educadores, gestores e profissionais. A emergência das áreas de competência de gestão, do trabalho em saúde e de educação na saúde apontam para a necessidade de ampliarmos as experiências educacionais de modo a incluirmos nos currículos o desenvolvimento de capacidades nessas áreas.
Os currículos convencionais estão fortemente concentrados no desenvolvimento de capacidades para a assistência à saúde e negligenciam as áreas de gestão e de educação, que se tornam verdadeiras surpresas para os profissionais recém-formados. A área de gestão, especialmente voltada à gestão de processos e de pessoas, revela o grau de expansão e diversificação das ações de saúde e a imperiosa necessidade de integrarmos e articularmos profissionais e processos de trabalho. A área de educação na saúde destaca a necessidade da aprendizagem ao longo da vida e das capacidades de buscar e analisar criticamente informações, de modo orientado à melhoria das práticas em saúde. Ressalta, ainda, a relevância do cotidiano do trabalho em saúde como espaço de aprendizagem para pacientes, familiares, cuidadores e equipes.
Um último aspecto reside nas escolhas (i) das atividades educacionais que potencialmente favoreçam a integração entre teoria e prática e o desenvolvimento contextualizado e articulado de capacidades e (ii) dos instrumentos de avaliação de competência. A avaliação deve dar visibilidade às aprendizagens construídas e ao desenvolvimento do perfil de competência, de modo que possamos certificar para a sociedade a competência como síntese de seus elementos constitutivos (RIBEIRO et al.,
2018).
REFERÊNCIAS
HAGER, P. e GONCZI, A. What is competence? Medical Teacher. 1996; 18(1):15-8.
LIMA, V.V. Competência: diferentes abordagens e implicações na formação de profissionais de saúde. Interface – Comunic., Saúde, Educ. 2005; 9(17):369-79.
MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina; 2007.
PERRENOUD, P. Construir as competências desde a escola. Porto Alegre: Art Med, 1999.
RIBEIRO, E.C.O.; LIMA, V.V.; PADILHA, R.Q. Formação orientada por competência. In: Lima VV e Padilha RQ (org). Série Processos Educacionais na Saúde vol1 – Reflexões e inovações na Educação de Profissionais de Saúde. Rio de Janeiro: Atheneu, 2018 (25-36).
Mar Aberto abril 21, 2020 16:11